Mobilidade além da mobilidade

Guilherme Moraes da Silva
13 min readMay 16, 2024

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Este será um texto sobre o segundo encontro do ciclo de estudos Marina Harkot. Ó aqui, ó:

Para quem não conhece a Marina, sugiro que dê uma olhada aqui.

Mas antes de falar deste segundo encontro, tenho de falar rapidinho sobre o primeiro encontro e sobre essa ideia do grupo de estudos.

O primeiro encontro foi realizado na sala de estudo Marina Harkot na USP (sim, foi criada uma sala de estudos em homenagem à Marina na FFLCH).

Ó a chamada aqui embaixo, ó.

Nesta noite do primeiro encontro eu estava meio emocionado e com um monte de questões vagando pela minha mente inquieta (término da escrita da minha dissertação de Mestrado, indefinições profissionais, questões familiares, etc).

Saí de casa atrasado e pedalei rápido. Já dentro da USP me encontro com uma mulher negra pedalando alguns metros na minha frente. Tomei uma decisão em um segundo de dúvida misturada com irresponsabildiade e coragem: me aproximei e fui puxar conversa (decisão meio tonta porque não é porque uma mulher está pedalando sozinha de noite que ela vai querer papo ou companhia de quem quer que seja, né).

Voilá! Era a Jô Pereira. Conheço pouco a Jô e queria ter mais histórias com ela mas as correrias da vida ainda não nos deu essa oportunidade. Nos conhecemos e nos gostamos (pelo menos eu gosto bastante dela e do que ela faz). Tivemos um minuto de frenesi pelo reencontro e na sequência nos pusemos na missão de achar onde estaria rolando o lançamento do grupo de estudos. Claro que nos perdemos e nos atrasamos mais (fomos primeiro na FAU porque achei que seria lá já que a Marina tinha vínculo de pós lá; depois que nos informaram que a sala era ‘no prédio das sociais’ mudamos a rota e tentamos descobrir onde era esse bendito prédio). Enfim, chegamos bem atrasados mas em tempo.

Senti uma felicidade ENORME ao ver que a sala era majoritariamente feminina e que havia MUITAS pessoas ali que eu nunca tinha visto. Acho que essa felicidade vem da sensação que sempre tive sobre os estudos em mobilidade (vejo muitos homens e quase sempre as mesmas pessoas carimbadas).

Nesta primeiro encontro houve falas que me deixaram bem pensativo (e fizeram minha mente dar uma explodida das boas). Vou fazer um sobrevôo sobre isso, peço calma e paciência (jájá começo a falar sobre o segundo encontro).

Haydee Svab

Esse nome já tinha passado em minhas leituras diversas vezes, mas eu nunca tinha tido contato com essa moça. Ela fez uma fala muitissimo interessante sobre o periodo em que esteve no Mestrado em Engenharia de Transportes da Escola Politécnica da USP.

Eu já achei interessante notar que ela vem da engenharia (ambiente prioritariamente masculino) e desenvolveu estudos sobre mobilidade com um olhar humanizado para os dados analisados.

Assumo o risco do erro pela minha memória, mas fiquei intrigado em perceber o enorme esforço realizado destrinchar o gênero dentro dos dados que existem sobre mobilidade urbana. Ela falou uma questão muito interessante mais ou menos assim: “Não existe a neutralidade de quem é usuário do sistema de mobilidade já que as pessoas possuem vários recortes de raça, gênero e classe, mas os dados produzidos encaram quem se locomove pelas cidades como alguém com neutralidade e isenção nesses fatores”.

Adorei ouvir a fala da Haydee porque ela trouxe o planejamento como algo vivo e inserido numa sociedade em conflito. Mais que isso, ela trouxe o conflito para o centro do planjemanto como algo incontornável. Aliás, como é possível pensar no planejamento sem considerar as características sociais das mulheres que locomovem pela cidade? Quem são essas mulheres? Onde elas estão? O que estão fazendo? Qual a causa desses deslocamentos femininos? (importante lembrar que o planjemanto em mobilidade da cidade de São Paulo e os departamentos de engenharia ainda são muito masculinos e, portanto, sequer possuem repertório para fazer essas perguntas — muito menos para complexificar as respostas).

Quer saber mais sobre a Haydee? Dá uma olhada aqui. Quer um pouco mais de material sobre o estudo dela? Vem aqui, ó

Ana Carolina Nunes

Eu conheci a Ana numa conversa meio aleatório numa festa de ciclistas em tempos áureos do ativismo. Talvez ela nem se lembre, mas eu lembro dela. Foi no Las Magrelas. Ela falava sobre a perspectiva do pedestre e como isso tinha total relação com a perspectiva do ciclista. Liguei meu radar nela, mas perdi o contato.

Muito tempo depois passei a notar o nome dela em vários lugares. Achei legal que ela estava fazendo parte de várias coisas e tensionando os debates. Lembro de ter visto o nome dela em atas das reuniões do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT) e rapidamente me lembrei da breve conversa que tive com ela. Sei lá o motivo, mas fiquei com uma sensação boa em ver alguém falar além da mobilidade em bicicleta para ciclistas.

A fala da Ana envolveu o enfrentamento da violência sexual no transporte público em São Paulo. Gostei do que ela falou porque trouxe complexidades estruturais sobre como o transporte coletivo embrutece as pessoas e coloca as mulheres numa condição de sensível vulnerabilidade. Além disso, ela contextualizou que o sistema jurídico ainda é tímido para fazer frente à violência sexual que as mulheres estão expostas e, por fim, ela falou um pouco sobre possibilidades de enfrentamento e suas potencialidades.

Quer saber mais da Ana Carol? Veja aqui uma entrevista bem interessante. Quer ler a tese de doutorado dela? Vem aqui

Jô Pereira

A Jô veio no finalzinho pontuar questões centrais que atravessam a mobilidade. Questões tão centrais que às vezes nem são percebida porque parecem óbvias demais como por exemplo “onde está o corpo negro no sistema de mobilidade da cidade” ou “o que pessoas negras vivenciam quando se deslocam pela cidade”.

Jô é uma pessoa que reúne umas características que me chamam a atenção, a começar por ser uma mulher negra periférica com formação em ballet clássico.

Sim, eu sei que tem muita gente falando sobre “corpo e cidade”. Mas a Jô fala além disso porque ela correlaciona a existência individual e coletiva no território. Não é tão individual e nem tão coletico, mas ao mesmo tempo é tudo isso de forma intensa. Ao mesmo tempo se cria o território com várias tensões colocadas no centro da conversa sempre se lembrando do passado e do presente. Ouso dizer que a Jô faz com que o território seja uma construção social com intensa perspectiva racial (posso estar errado e assumo o risco — debate aberto, aceito críticas).

No fim do lançamento do ciclo de estudos eu conheci uma moça simpática. Ela estava do meu lado e eu nem tinha dado nota da presença dela. O nome dela é Ana e ela estava com um olhar bem curioso. Ana não conhecia quase ninguém ali e se aproximou porque acaba de se mudar para São Paulo e notou que a mobilidade é uma questão crônica da cidade. Colei nela e troquei umas palavras mais motivadas pela minha emoção em ver rostos novos.

Acho que foi na fala da Marília Moschkovich durante o debate… é acho que foi nesse momento que puxei um fio de prosa com essa moça chamada Ana e disse que ela tinha de conhecer as outras meninas. Resultado: Ana se enturmou com as meninas e até pegou carona para o metrô com elas (daóra os potentes encontro entre mulheres que tomam o protagonismo de suas histórias, né).

Quer saber mais da Jô? Leia aqui mais um pouquinho

Quer ouvir a Jô debatendo? Vem nesse podcast aqui

Essa foi a foto final do encontro. Registro historico.

Pronto. Esse foi o primeiro encontro. Agora vou falar do segundo (sim, meu fluxo de raciocínio é reto e curvado ao mesmo tempo).

O segundo encontro do grupo de pesquisa foi realizado no EUREKA COWORKING, quase na esquina da paulista com a consolação.

Neste segundo encontro foi escolhido ter menos apresentações para priorizar os debates. Duas pessoas falaram. Vamos lá.

Daniel é um colega de longa data e de muitas batalhas. Eu lembro que eu era radicamente contra o Pase Livre (expressão então usada naqueles idos de 2013 a 2015). Eu não gostava da ideia e achava que isso era coisa de gente que não entende de mobilidade (tonto eu, né). Até que vi que o Daniel lançou um livro sobre o tema. Comprei e fui ler. Fiquei com várias dúvidas e reflexões…

Resolvi me dedicar um pouco mais ao estudo deste tema. Hoje mudei de lado. Sou favorável à Tarifa Zero por vários fatores, principalmente econômicos e sociais (todo mundo ganha, inclusive as pessoas e as prefeituras).

Mas restringir o Daniel ao tema da Tarifa Zero não é uma boa ideia. Neste encontro ele trouxe algumas reflexões sobre o que a academia vem chamando de uberização da sociedade (claro que o nome reduz o alcance do debate e que a sistemática da uber é aplicada a vários outros aplicativos).

No geral, o Daniel trouxe contornos de que há um aumento sensível de mortes de motociclistas na cidade de São Paulo desde que houve o aumento da utilização dos aplicativos uttilizados para pedir comida e outras coisas mais. Aqui é interessante notar que os dados são a alma desta análise e, não por acaso, os dados sofrem um apagão seletivo.

Estamos no meio de maio de 2024 e até agora a Prefeitura de São Paulo não disponibilizou os índices de letalidade de 2022

Olhem aqui embaixo o print que tirei hoje (16/05/2024) do site da CET.

https://www.cetsp.com.br/sobre-a-cet/relatorios-corporativos.aspx

Isso poderia ser um ENORME ESCÂNDALO porque faz pelo menos três anos que os dados não são divulgados, mas mesmo assim a Prefeitura divulga números sobre mortes no trânsito (como por exemplo em relação à faixa azul).

Dá para notar que os números existem e estão disponíveis para as áreas técnicas da Prefeitura, mas há uma decisão aparentemente política de conter a transparência dos números. Sinceramente não sei quem ganha com a maquiagem dos dados técnicos… isso coloca a própria credibilidade dos números em dúvida e faz com que passemos a ter de aceitar que está tudo bem quando na verdade vemos a agonia de uma cidade com o trânsito doente e não passando nada bem ao menos nos dois horários de picos de segunda a sexta.

Há rumores de que a CET não irá dar continuidade aos relatórios anuais de sinistros. Se assim for, será uma enorme perda para a sociedade pois os dados do INFOSIGA (do governo do Estado) são dados brutos que podem não se enquandrar nas dimensões das políticas pública municipais da capital. Nesse contexto, basta lembrar que a capital reúne experiência em iniciativas inovadores que são acompanhadas de acordo com dados levantados e analisados em nível municipal, sendo importante recordar a forma como foram feitas as ciclovias/ciclofaixas, as faixas/corredores de ônibus, as motofaixas e os recuos de semáforo para motociclistas. Todas essas iniciativas foram (e são) acompanhadas de forma detalhada pela sociedade civil e pelos técnicos da CET. Descontinuar a produção de relatórios anuais parece ser uma medida de falta de compromisso com a Segurança Viária.

O Daniel levantou mais algumas questões sobre o quanto a ausência de compromisso com a racionalidade é péssimo para a mobilidade. Entre os dados que ele trouxe foi trazido um gráfico bem interessante em que dá para ver a quantidade de motociclistas mortos de 2015 a 2021 (útlimos dados disponíveis). Neste meio tempo eu notei que houve bem menos mortes na época do HADDAD e da estratégia de redução das velocidades como forma de redução da letalidade.

Após a saída do HADDAD da prefeitura (em janeiro de 2017) os demais prefeitos (DÓRIA, COVAS e NUNES) tiveram medidas concretas a favor do aumento de velocidades e o culto ao Deus Carro como solução da mobilidade urbana. Não por acaso a tendência de queda se reverteu em janeiro de 2017 e passou a ter forte alta.

Aqui está o livro do Daniel.

Quem quiser ler a recente dissertação dele pode vir aqui.

A segunda pessoa a falar foi a Aline.

Eu gosto da Aline de uma forma muito especial. Nossa, parece que gosto de muita gente, mas isso é mentira. Eu tenho várias ressalvas a muita gente do rolê e evito contato com dezenas de pessoas. Mas as pessoas que cito neste texto são pessoas agradáveis e que quero continuar a manter contato o mais próximo possível (eu me vejo fazendo jantares e encontros para prosear mensalmente com todo mundo que menciono neste texto).

Aline trouxe a perspectiva das plataformas de trabalho no contexto de precarização.

Daí fica impossível ignorar a questão do gênero porque o contexto de precarização do trabalho levou involuntariamente muitas mulheres para o trabalho em plataformas de entrega. Digo que é impossível ignorar o gênero porque quem trabalha com entregas fica em exposição nas ruas e por isso passa por situações de maior violência ativa (assédio, por exemplo) e passiva (não ter acesso a banheiro, por exemplo) — situações que são experimentadas com mais intensidade pelo gênero feminino.

Mas a Aline falou mais do que isso. Nessa parte eu gostei bastante da fala dela porque ela trouxe a experiência de seu envolvimento com as Señoritas Courier (conhença mais aqui). Por envolver pessoas entregadoras, há a constante questão sobre o valor de remuneração para que o trabalho seja justo. Bingo! A Aline trouxe a infomração de uma inovadora construção de um algoritmo produzido pela UNICAMP (obrigado pós-graduação de Universidades Públicas!!!!) e uma plataforma produzida pelo núcleo de tecnologia do MTST (como sempre os movimentos sociais são o centro nervoso e o coração da sociedade civil).

Fiquei meio confuso para entender direito sobre o que se tratava, mas a Aline foi bem didática ao explicar com um exemplo: o sanduíche que pedimos no aplicativo no meio de uma madrugada chuvosa e que tem frete de R$ 3,00 não é o tipo de trabalho que faz ser justo deixar uma pessoa de prontidão e preparada a aceitar qualquer entrega para sobreviver.

Foi trazida a informação que há plataformas de entregas que trabalham com a remuneração de aproximadamente R$ 6 por hora trabalhada. Por sua vez, as Señoritas trabalham com o patamar de R$ 20 por hora trabalhada. O algoritmo e a plataforma produzidas servem para equilibrar esses interesses pelo trabalho justo e remunerado de forma condizente com a humanidade mínima de todas pessoas envolvidas

Quer saber mais sobre as Señoritas? Veja aqui

Tem mais aqui também, dá uma olhadinha

Como foram os debates deste segundo encontro?

Os debates foram calorosos e rodaram sobre todos os temas tratados. Foi incrível ver como os pontos se interligam. Letalidade, velocidade dos veículos, falta de fiscalização, falta de regulamentação dos aplicativos, jogadas estratégicas dos aplicativos para criar uma narrativa favorável…. tudo faz parte do contexto de precarização do trabalho e maximização dos lucros em detrimento da subjetividade das pessoas envolvidas com o trabalho.

Eu gostei do que foi falado, mas foi a fala do Ricardo da Ciclocidade que me tocou de uma maneira mais forte.

Ricardo trabalha com entregas e pedala muitos quilômetros por dia.

Ricardo é um cara inteligente e consegue perceber os movimentos que as empresas fazem para maximizar seus lucros na base do suor alheio

Ricardo entende a posição que ele exerce nesta roleta-russa que se tornou tentar sobreviver com entregas.

De tudo o que o Ricardo falou, fiquei pensando o quanto eu sou parecido com ele e o quanto eu poderia também ser um entregador (não fosse algumas sortes e privilégios que tive na vida). Passou um filme na minha cabeça de jovem negro que cresceu no extremo norte da cidade (lááá no Jd. Tremembé, dá um google aí)

A fala do Ricardo resumiu o papel que o grupo de estudos pode ter (algo para ligar a academia e a sociedade). Fiquei empolgado em notar o quanto de subjetificação estamos envolvidos e, também, o quanto que temos notado que as estruturas do nosso sistema de produção tecnológico e modernizado atingem de forma sistêmica grupos são criados para ser precarizados.

Tive a nítida impressão de que a instrumentalização das tecnologias não é um efeito colateral indesejado. Pelo contrário! Mulheres não conseguem pegar ônibus com carrinho de bebê porque são homens que fazem o planejamento da SPTRANS, por exemplo. Pessoas negras e pobres são a maioria dos entregadores de aplicativo não por acaso (enquanto isso as universidades pululam com pesquisas de pessoas brancas com a pele fina que se debruçam sobre o universo dos dados das plataformas de entregas).

Para terminar, fiquei muito feliz em ver que neste segundo encontro vi pessoas que eu já conhecia, mas também vi outras pessoas que eu mal conheço. Revi a Ana (aquela moça que sentou do meu lado no primeiro encontro do grupo de pesquisa — ainda quero conversar mais com essa moça) e percebi que talvez esses encontros sejam uma ótima forma de trocar ideias e incluir pessoas que inicialmente não teriam contato pelos meios ordinários com a temática da mobilidade humanizada.

Em breve haverá o terceiro encontro do grupo de pesquisas.

O tema? Ainda não sabemos.

Onde será? Não, não sabemos.

Quando será? hmmmm, não sabemos

Não sabemos muita coisa, mas sabemos que tem muita coisa nos une e vamos continuar nos encontrando para conversar, partilhar e aprender de forma coletiva.

Marina, viu como como tá lindão tudo isso?

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