De novo a mesma história sobre Monarquia Judicial

Guilherme Moraes da Silva
8 min readFeb 2, 2024

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Já tratei sobre esse tema aqui outras vezes: o Poder Judiciário é o retrato mais fiel que temos da Monarquia.

É interessante como o código de vestimenta dos juízes no imaginário coletivo lembra (e muito) as roupas de reis e rainhas.

Tenho amigos Juízes e inclusive trabalho com um Juiz que admiro bastante. Falo isso sem medo de atacar pessoas e nem desmerecer as instituições. Sou defensor de primeira linha da democracia, inclusive para as ideias que não me agradam.

Acredito que o império das leis e da justiça é MUITO melhor do que o arbítrio e vejo no Ministério Público, na Advocacia, na Defensoria e nas Procuradorias um sistema muito complexo e interessante de compensações de direitos e liberdades.

Esse pulsar é o que me encanta no direito desde os idos da faculdade (e lá se vão muitos anos).

Não vou iludir ninguém com discursos aleatórios contra o judiciário. Nem vou falar mal de juízes. Muito menos vou falar mal das leis. Desculpe-me por desapontar quem me lê.

Vou falar sobre questões mais concretas, muito mais concretas.

Sou servidor do poder judiciário. O que isso quer dizer? Bom, sou parte da casta de pessoas que faz absolutamente de tudo para que a justiça seja entregue. Se tiver que atender balcão lá estarei. Se tiver de fazer certidões, documentos, minutas, assessorar audiências… lá estarei. Ué, meu cargo é de escrevente técnico-judiciário e estou na função de assistente judiciário. Isso quer dizer que presto assessoria técnica e jurídica a juízes na tomada de decisões, sentenças e despachos.

Vou decepcionar quem me lê pela segunda vez.

Não, nós do andar de baixo não trabalhamos com nenhuma pompa e também não ganhamos tão bem quanto parece. Quando pipocam notícias de que o judiciário tem remunerações altas, não é da peãozada que estão falando. Claro que tem um ou outro que ganha bem, mas a grande massa de servidores do judiciário ganha algo em torno de três a seis salários mínimos líquido.

Peão do judiciário não usa roupa chic e nem ganha tão bem quanto parece

Vish. Lá vou eu decepcoinar novamente quem me lê porque não vou falar mal do que os juízes ganham.

Sem entrar no juridiquês: juiz tem de ganhar bem. Caso contrário fica bem fácil para “cair em tentação” ou ser parcial contra ou a favor de quem quer que seja. Agorinha me lembro de que teve um juiz que respondeu a um procedimento na corregedoria por causa de relógios caros que ele teria pedido para uma parte que era um rico empresário. Não lembro de detalhes e nem de circunstância desse caso, mas lembro de que o encanto pelo dinheiro do empresário tocou o coração do juiz (que deveria ter postura equidistante e tratamento tão cortez quanto se estivesse lidando com uma parte paupérrima).

Agora me lembrei de outro caso famoso: teve ou está tendo um processo no CNJ contra Desembargadores do Judiciário da Bahia por supostamente estarem envolvidos de forma indevida na venda de terras em regiões produtivas daquele Estado. Parece que é coisa de muitos milhões de reais que estaria envolvido. Não sei se os magistrados são culpados ou inocentes, mas sei que há a alegação de envolvimento indevido e muito dinheiro rolando.

Juiz tem de ganhar bem. Ponto. Não abro mão deste meu posicionamento (e acredito que penso assim porque coloco na Magistratura a defesa da democracia e da lei — o que significa a necessidade de ter total independencia para julgar contra interesse de poderosos endinheirados sem medo de nenhuma ordem).

Este texto está tomando um rumo que parece perigoso. Não, não vou defender o salário de juízes. Hoje estou o puro suco da controvérsia, né?

Então qual o motivo deste texto?

Olha, o tema parece corporativo e parece que estou defendendo algo para a minha classe de servidores públicos. Vamos lá.

De onde eu venho, a lei se aplica a todos e não diferencia a quem ela será aplicada. Se tem dinheiro então todos devem receber de acordo com suas importâncias. Se não tem dinheiro então não tem dinheiro. Não gosto de rodeios sobre questões objetivas e racionais. Ou algo ‘é’ ou ‘não é’.

Recentemente algumas questões aconteceram no CNJ e merecem ser contadas:

  • o CNJ editou uma normativa em defesa da saúde de integrantes do poder judiciário e determinou que os Tribunais regulamentassem os auxílio-saúde em até 10% do salário do Juiz substituto. Isso se aplicaria para Juízes e servidores. Sabe o que aconteceu? No TJSP regulamentaram no valor máximo para Juízes e para servidores o auxílio-saúde foi de R$ 300 para R$ 500. Sabe quanto os juízes passaram a receber? Mais de R$ 2.000,00!
  • o CNJ editou uma normativa de que cargos iguais devem receber a mesma coisa. Eu exerço uma função de assessoria para juiz. Tem quem exerça a mesma assessoria para Desembargadores. Quem trabalha com desembargadores ganha quase o dobro do que eu ganho (e trabalham de forma bem mais leve). Esse tema foi levado para o CNJ e foi feito um acordo no qual o TJSP pagaria aos assistente de juízes o valor de 72% do que recebe um assistente de desembargador.

Este mês de fevereiro foi o primeiro pagamento. A ansiedade era enorme. Seríamos valorizados pela primeira vez. Tudo bem que queríamos receber a mesma coisa que o pessoal da segunda instância, mas receber um pouco mais é amenizar a injustiça. Havia um clima de felicidade. Havíamos conseguido uma vitória!

Nunca duvide da maldade da administração pública

Sabe o que aconteceu? Não você não sabe (sou eu que estou contando esta história para você).

Nosso holerite tem várias siglas e coisinhas: auxílio alimentação, verba de representação, gratificação judiciária, vale transporte, etc, etc, etc. O combinado era aumentar a gratificação judiciária, ou seja, o valor que recebemos por exercer a tarefa de segurar a bronca do poder judiciário.

A diferença de salário com a segunda instância é de uns R$ 4.000,00. O acordo previu 72% a serem pagos em dois anos. Então pensei que seriam uns R$ 1.500 esse ano e R$ 1.500 no ano que vem. Sou de humanas e não sei fazer conta, mas isso me parecia fazer sentido.

O que aconteceu na prática? Mexeram na metodologia como ser daria esse aumento, tiraram daqui e dali, a lei tal não incide sobre não sei o que, a resolução tal não incide sobre não sei o que lá…. resumo: fizeram de uma forma com que quem é novo no tribunal e não entrou nesse debate passou a receber R$ 1.000,00 a mais. Quem é mais antigo foi recebendo cada vez menos e teve quem não recebeu NENHUM CENTAVO A MAIS.

A maldade administrativa é tamanha que eu já perdi minhas esperanças. Na prática vamos reclamar e mostrar a injustiça. A resposta será um caminhão de burocracia para justificar que tudo está certo. Também vão falar que não possuem mais dinheiro para os servidores.

Eu sempre me pergunto como que pode ter sempre dinheiro a mais para juízes e nunca ter dinheiro para servidores. São só 2 mil juízes e 50 mil servidores no TJSP. Como que pode essa minoria ter tudo enquanto a outra parte não tem quase nada?

Não, não quero estudar para ser juíz. Não me encanta ter privilégio e poder.

Sinto um desânimo e tristeza.

Faço meu trabalho com muito esmero. Não deixo nada acumular. Trato bem a todos. Mantenho bom relacionamento com partes, MP, Defensoria…

Tenho contas a pagar e não quero fazer nada de errado para conseguir constituir meu patrimônio. Já advoguei e decidi entrar no TJSP por minha mais pura decisão. Eu poderia continuar advogando. Poderia fazer outra coisa da vida. Passei num concurso para analista do MP e poderia ter mudado de emprego. Resolvi ficar. Não sei se fiz a melhor escolha.

Na Casa de Justiça impera a Injustiça. Tem dias que são piores e as injustiças são mais brutais. Hoje é um dia desses.

Quando abri meu holerite e vi que eu pouco recebeira a mais… nossa, bateu um desânimo enorme. Que estímulo eu tenho para prestar um bom trabalho? Ética não paga minhas contas!

Adoro ver juízes falando que adoram a carreira. É bonito ver como a carreira pode ser bonita: a obrigação de estar no fórum é das 13h45min às 17h; tem uma equipe de gabinete; tem uma equipe de cartório para cumprir decisões; tem equipe administrativa no fórum… tem remuneração sempre crescente; tem benesses de várias ordens proporcionadas pelas associações de classe de magistrados (plano de saúde de elite por menor preço, clubes e restaurantes com preços subsidiados, financeira com taxas camaradas, etc); tem a deferência que todos prestam a juízes e quase lambem o chão.

Minha gente: juízes são servidores públicos. Só isso. Prestam serviço público. Promotores também são servidores públicos. Defensores Públicos também. São eles que prestam serviço público e portanto deveriam ter mais deferência à infinita gama da peãozada que os rodeia.

São elees que deveriam encampar para que a peãozada recebesse melhor remuneração. Imagina a seguinte situação: juiz ganhando bem e equipe de gabinete ganhando mal. Um empresário ou criminoso que tenha acesso à equipe de gabinete…. VRAU.

Pouco mais de R$ 2.000 pode comprar a ética de um servidor que recebe migalhas por um aumento que demorou ANOS e só foi conseguido após inúmeras idas e vinda do procedimento no CNJ.

É errado se envolver em falcratura? Com certeza. Mas eu não condeno quem pensa em si antes de pensar no abstrato senso de justiça e ética. Não condeno ninguém. Nem juiz eu sou (e nem quero ser).

Essa monarquia judicial é enojante demais! A legalidade é feita para atender a uma pequena casta enquanto milhares de pessoas devem agradecer por ter algum trabalho. Funções de confiança são usadas para diferenciar um ou outro tipo de servidor para que ele nunca queira se manter no piso com a ralé que só recebe o mais básico da remuneração.

Claro que estou falando aqui de dinheiro, mas é interessante que as RESPONSABILIDADES NUNCA CESSAM OU AMENIZAM! Acordar cedo, resolver todos os processos, atender pessoas, deixar tudo pronto para o juiz analisar…. dormir cada vez mais tarde. Conheço pessoas que dedicam praticamente a energia vital para o tribunal. Deixam sonhos, viagens, filhos… tudo vai para um segundo plano. Querem trabalhar mais e ter mais confiança para poderem ter mais responsabilidades e ganhar mais uma função que renderá mais dinheiro.

Na firma monárquica judicial peão eficiente trabalha mais.

É um joguinho. Um castelo de cartas em que a programação está feita para que apenas um grupo mande e todos os demais entre em intermináveis batalhas para sobreviver.

Você lembrou de algo?

Pois é. A monarquia judicial não são pessoas mas, sim, uma instituição enorme que tenta criar tudo ao seu redor na sua imagem e semelhança. Esse padrão nada tem a ver com quem constrói a história desde baixo.

Guardo muita mágoa e tristeza quando olho para cima, mas guardo muito orgulho quando olho para baixo. Meu trabalho sempre foi olhar para baixo e saber de onde venho ecomo posso fazer para que cada processo seja um pouco menos modorrento. Isso pode não ser nada para quem pensa em estatísticas e burocracia. Não me importo.

Toda carga de orgulho não paga minhas contas e não apaga meu nojo pela seletividade bonança às custas do suor alheio.

Legalidade, democracia e justiça parece ser adjetivos bonitos e suculentos para a retórica institucional.

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