A “verdade” sobre os penduricalhos ou os “penduricalhos” da verdade

Guilherme Moraes da Silva
9 min readAug 4, 2023

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Este texto é uma reflexão sobre um texto pulicado no conjur pelo vice-presidente do TJSP. Quer quiser conferir é só ler aqui.

No texto do ilustre magistrado há uma certa defesa incondicional ao recebimento de diversas verbas à magistratura.

Segundo o autor do texto, em breve resumo, todas as verbas são lícitas e devidas. Entre os argumentos utilizados há o enorme acervo, a carga de trabalho, as limitações que o cargo impõe, etc, etc, etc.

Vou começar meu texto com as mesmas palavras do ilustre magistrado:

Disse o vice-precisente do TJSP: “Conforme nos ensina o velho adágio, “o pior cego é aquele que finge não enxergar; o pior surdo o que finge não ouvir; o pior mudo, o que não admite; e a pior mentira é enganar a si próprio””.

Verdade ou mentira são conceitos abertos, todos nós sabemos. Basta um requinte de habilidade para se fazer uma verdade se tornar mentira e vice-versa, ainda mais no nosso meio jurídico.

Quando eu ainda estava na faculdade me revoltei quando ouvi uma palestra em que se defendia que “no meio judicial não se tratam de verdades mas, sim, de versões! Faça sua versão se tornar uma verdade dentro do processo”. Não lembro quem falou isso, mas lembro da minha revolta de jovem emocionado.

Sempre acreditei em verdade e sempre acreditei no caminho da retidão.

Acho que todos somos assim, mas às vezes o ambiente faz com que alguns interesses sejam operados para se tornarem verdades ainda que parciais. Ora, até o óbvio precisa ser dito: verdades parciais são metade verdade e metade mentira (o inverso também é verdadeiro, na íntegra).

Excesso de trabalho no judiciário é uma regra, isso é uma verdade e tenho de concordar com o vice-presidente do TJSP ao menos neste ponto. Mas a partir daqui vou ter de divergir do ilustre magistrado.

Não vou tomar o tempo de quem me lê com leituras de artigos de lei, da constituição ou do que o valha.

Para atender à precisão que as palavras devem ter vou me ater à ideia que é retirada da Constituição: algumas carreiras são remuneradas por subsídio, ou seja, em parcela única (vedado o acréscimo de qualquer outra coisa, salve exceção prevista na constituição).

A regra é receber uma única parcela. A exceção é algum detalhe a ser pago.

Simples de entender, difícil de aplicar.

E a dificuldade está num dispositivo meio escondido que fala verbas indenizatórias não se consideram no teto constitucional (§11 do art. 37 da CRFB, para os mais íntimos).

Não me cabe, de forma alguma, questionar decisões judiciais ou o entendimento do CNJ. Longe de mim ficar fazendo birra com o que já está posto.

As palavras possuem significados e o vice-presidente sabe muito bem disso. Quando se trata de carreiras de estado e, portanto, da vida cotidiana de quem realmente tem poder, para se conseguir algo basta saber brincar com palavras e com números.

Talvez o incômodo que o vice-presidente tenha sentido seja porque o conjur e grande parte da sociedade não consegue entender porque a remuneração indenizatória pode ter limites infinitos.

É óbvio, mas precisa ser dito: ninguém quesiona a natureza de verbas indenizatórias para custeio de férias não gozadas.

O problema não está na natureza dessas verbas e chega a ser até pueril ter de escrever isso.

O problema começa quando essas verbas entram na autonomia administrativa de cada tribunal (o que o CNJ obviamente não pode interferir). Este é o ponto em que as palavras cedem lugares aos números.

Vamos fazer um paralelo com a iniciativa privada: um trabalhador celetista quer receber um bom salário e até aceita ter um bom VR, VA, VT e outras verbas (mas o que importa é um bom salário).

Para a magistratura a regra é outra: o vencimento (o “salário”) pode ser meramente ilustrativo desde que haja muitas verbas indenizatórias. E é assim que a remuneração (o “salário total”) pode ser muito maior do que o teto constitucional.

Vamos falar um pouco de números (vou me ater a um único exemplo, para não cansar quem me lê), mas sempre lembrando que o TJSP sempre se faz de vítima ao argumentar que é o maior tribunal do Brasil e tem um orçamento extramamente limitado.

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/01/15/tjsp-triplica-limite-do-auxilio-saude-destinado-aos-magistrados.htm

Auxílio-saúde: o CNJ baixou a Resolução CNJ 294/2019 que fala mais ou menos o seguinte: o limite mensal da verba indenizatória de saúde de magistrados e servidores pode ser de até 10% do vencimento do juiz substituto.

O TJSP lançou mão da portaria nº 10.026/2022 que diz mais ou menos o seguinte “vamos aplicar o auxílio saúde no patamar máximo de 10%”, mas só para magistrados (art. 1º).

A se considerar que o subsídio de magistrado substituto do TJSP é de aproximadamente R$ 28.800,00 então esses 10% significam R$ 2.800,00.

Até aqui tudo está conforme a natureza indenizatória e de acordo com o CNJ.

Mas o que acontece com o os servidores? Bom, aí o auxílio-saúde extra-oficialmente ganha outra natureza bem menos condizente e muito mais cruel.

A portaria 10.228.2023 concedeu o aumento da verba indenizatória de R$ 370,00 para incríveis R$ 500. É isso mesmo queo você leu! Ao invés do 10% do vencimento do juiz substituto (conforme diz o CNJ), a escolha do TJSP foi conceder um caraminguá (ilustre vice-presidente, me desculpe pela imprecisão técnica-jurídica, mas nós aqui do andar debaixo temos um vernárculo com váriações linguísticas — sugiro estudar um pouco disso através do Prof. Dr. Marcos Bagno antes de me criticar ou de inferiorizar ainda mais minha humilde fala) de pouco mais de 0,5% do que foi determinado pelo CNJ.

Vocês conseguem entender que a questão não é a natureza da verba indenizatória mas sim o seu montante?

Vou explicar de novo:

O CNJ fez uma MESMA normativa para magistrados e servidores e estabeleceu os mesmos patameres máximos mas, enquanto isso, o TJSP aplicou o limite máximo aos ilustres magistrados e concedeu apenas 0,5% deste limites aos servidores.

Percebem que para magistrados o céu indenizatório é o limite? Parece absurdo e é: tudo isso dentro da “legalidade” e na via administrativa.

Pode parecer que estou de picuinha (desculpaê sinhô vice-presida, daqui eu falo da perspectiva de quem respeita a VOLP mas mesmo assim preferea variação linguística de uma lingua viva e pulsante). Os integrantes de poder devem ser bem remunerados e aqui o devem é sentido de DEVER MESMO. É bem lamentável ver juízes pedindo exoneração (“dando baixa na carteirinha de juiz”, como dizem nos meios concurseiros) para fazerem algo mais rentável e prazeroso.

Cargos públicos não servem para enriquecer. Cargos públicos servem para servir ao público. Sim, serviço público é para servir ao público. Isso é coisas para vocacionados e não para quem quer estar na antesala dos ricos.

Acho que eu preciso desenhar melhor o nível do absurdo que é essa defesa incondicional dos penduricalhos infinitos.

Vou olhar a remunarção de um Desembargador do TJSP no mês de março deste ano de 2023. Tomei o cuidado para não pegar o mês de janeiro e fevereiro porque… sei lá, podem ter férias e algumas verbas eventuais que incidem no começo do ano. Comecei a olhar em março porque é um mês mais comum e um tanto aleatório.

Não importa o nome do Desembargador. Não importa quem seja, mas desde já já adianto que eu não estou me referindo ao Vice-Presidente do TJSP. Peguei um nome aleatório na transparência.

Vamos lá:

Fonte: vai lá no site do TJSP e dá uma olhadinha

O senhor desembargador recebeu R$ 70.796,65 de créditos no holerite mas a remuneração “paradigma” (sim, o vencimento é só um paradigma ilustrativo) foi de apenas R$ 35.462,22.

METADE da remuneração bruta é o salário. O resto é verbas das mais variadas natureza. Sou justo no argumento: há vários descontos de várias naturezas também. Por isos deixei a soma dos débitos bem evidente para que não aleguem que tenho má-fé.

Mesmo se fizermos um abatimento dos créditos com os débitos vamos ter um valor bem maior do que o “salário” que o magistrado deveria receber. Voilá, R$ 48.487.91 líquidos enquanto o “salário” é de R$ 35.462,22.

Talvez achem que estou sendo leviano, né? Vamos ver como vem a explicaãção no holerite do nobre magistrado sobre os penduricalhos.

Fonte: vai no site do TJ, já disse!

Olha que interessante como as palavras possuem um sentido bem instigante: (i) no item 2 há menção a “vantagens decorrentes de sentença judicial ou extensão administrativa” (muito interessante essa ideia de “extensão” que a via administativa ganha — é como se a parte judicial e burocrática do TJSP fosse um a extensão do outro em uma plena mistura de interesses e direitos); (ii) no item 3 está descrito “Auxílio-alimentação, Auxílio-transporte, Auxílio Pré-escolar, Auxílio Saúde, Auxílio Natalidade, Auxílio Moradia, Ajuda de Custo, além de outras desta natureza”, ou seja, tem coisa a mais mas nem irão se dar ao trabalho de explicar o que seja; (iii) no item 4 está descrito “ Abono constitucional de 1/3 de férias, indenização de férias, antecipação de férias, serviço extraordinário, substituição, pagamentos retroativos, além de outras desta natureza”. realmente não é que eu esteja pegando no pé mas pagar “penduricalhos” retroativos na via me parece uma questão um tanto atentatória à ideia de SUBSÍDIOS PAGOS EM PARCELA ÚNICA; (iv) no item 5 tem a pá de cal em qualquer dúvida que possamos ter porque o tribunal prevê pagamento de “Gratificações de qualquer natureza”.

Eu até queria fazer um gráfico lindão mostrando a remuneração média dos desembargadores mostrando a média do que os magistrados recebem. Eu também queria mostrar de forma comparativa com o que os escreventes ganham.

Seria didático fazer esse gráfico, mas infelizmente eu não consigo fazer isso porque me daria gastura ver o quanto os servidores são humilhados quando nos referimos à remuneração. No TJSP os humilhados não serão exaltados, só vão carregar o piano nas costas.

Só vou indicar uma simples questão:

Um escrevente técnico-judiciário recebe em média R$ 6.200.00 por mês, por acaso MENOS do que um desembargador paga de contribuição previdenciária.

Não adianta os escreventes reclamarem sobre a remuneração ser baixa para fazer frente à brutalidade de trabalho do cotidiano. Olha só que bizarro: quem está no piso quer melhorar a remuneração e quem está no topo quer melhorar os penduricalhos porque… bem, porque eles já estão no topo.

Eu nem vou tomar tempo de quem me lê com outras questões.

Auxílio para cumular outras varas, por exemplo, daria um ótimo texto para mostrar que boa parte do trabalho é feito por servidores que não recebem nenhum centavo sequer para trabalhar a mais.

Eu poderia falar sobre a indecente liberdade que os tribunais possuem para pagar aos magistrados verbas retroativas na via administrativa (que se tornam passivos milionários), sob o argumento de que a judicialização poderia gerar mais gastos (isso enquanto servidores ficam décadas em disputas judiciais intermináveis e só recebem precatórios no fim da vida, mas tudo atualizado e corrigido conforme manda a lei — essa ética seletiva é enojante, não é mesmo?).

Seria uma ótima oportunidade para escrever sobre a escassez de servidores e a alta demanda de litigiosidade. Sim, os servidores de gabinete dos ilustres magistrados trabalham intensamente e recebem migalhas enquanto o banquete indenizatório é servidos para quem está no tablado.

Por fim, talvez oportunamente eu poderia escrever um texto para mostrar que os assessores de magistrados de juízes ganham metade do que os assessores de desembargadores (ainda que um juiz não ganhe metade do que um desembargador ganha).

Não vou escrever nenhum destes textos.

Parece que os magistrados paulistas não estão preocupados em ganhar um vencimento (“salário”) maior, já que as verbas indenizatórias são muito mais atraentes.

Não se trata de questionar a natureza das verbas indenizatórias (todos temos de ter férias indenizadas, não é mesmo?), mas, sim, de refletir sobre como a maior corte do país consegue fazer mágicas para pagar valores astronômicos a seus magistrados enquanto alega que sofre de restrições orçamentárias.

Cada vez mais vejo que a magistratura se assemelha a uma monarquia em que alguns possuem todos os privilégios orçamentários que são custeados por todos aqueles que possuem todos os deveres, obrigações e restrições que a lei impõe.

Parece a primeira foto deste texto, não?

A cegueira deliberada (ou como prefere o ilustre sr. vice-presidente do TJSP: willful blindness doctrine) reside na defesa de interesses de uma classe judicante a ponto de os tornar como direitos quase ilimitados em detrimento de quem efetivamente suporta a restrição orçamentária (servidores) e de quem recebe os serviços judiciais (advogados e partes).

Tudo que está na norma é justo, só falta saber para quem.

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