A quem ouvir? Por quê ouvir?

Guilherme Moraes da Silva
11 min readNov 26, 2023

--

Este texto é uma reflexão sobre um artigo publicado na Folha de São Paulo pelo Caio Guatelli sobre uma lei recém promulgada que prevê a ampliação da participação popular no planejamento cicloviário.

Quer ler? vá no link aqui abaixo, ó.

Gosto bastante do Caio e das pautas que ele levanta. Neste aspecto este grande jornal está de parabéns por ampliar debates que não existiriam se não fossem por articulistas orgânicos e comprometidos como o Caio.

Aliás, este texto é resultado dessa reflexão crítica sobre temas complexos como o dessa matéria recém publicada. Quero trazer algumas questões sobre o que não é dito no texto de lei e sobre minha visão sobre o tema (não que eu seja alguém importante, mas talvez minhas perspectiva tenha algo a contribuir neste campo aberto de debate).

Comunicação é uma via de mão dupla. Por um lado se emite uma mensagem e por outro lado o receptor depreende a mensagem enviada.

É bem comum encontrar na internet afora textos bem bonitinhos que se debruçam sobre a ideia de que “somos responsáveis pelo que dizemos, não pelo que os outros entendem” e isso ilustra bem esta via de mão dupla que é a comunicação.

Vários e vários e vários dispositivos legais prevêem a participação popular na formulação de políticas públicas. Não vou gastar o tempo (e a sua paciência) da pessoa que me lê com jograis de artigos, incisos, parágrafos de leis que falam o óbvio: a pessoa cidadã deve ser ouvida na formulação de políticas públicas que a envolvem.

Isso é bem básico, mas não é óbvio.

Ainda estamos em tempos em que o óbvio precisa ser dito e repetivo.

Viemos de um histórico democrático com muita oscilação.

Os tempos de plena democracia claudicam com tempos de ditaduras ou restrições extremas da vontade popular. Não é em vão que temos dificuldades em eleger representantes já que tivemos poucas dúzias de eleições democráticas livres.

Entre outros fatores, por não termos eleições democráticas também não temos a tradição de participar do cotidiano da tomada de decisões. Bom, quando falo sobre ‘nós’ estou falando daqueles do andar de baixo, como diria MILTON SANTOS.

Noutros patamares sempre teve grande envolvimentos de pessoas da sociedade com as tomadas de decisões.

Acho que foi no livro da MALU GASPAR que vi uma frase que foi repetida em vários lugares e era mais ou menos assim “nós sempre estivemos aqui, são vocês que se alternam”.

Pelo contexto é possível notar que a frase teria sido dita por um empreiteiro famoso e teria sido destinado a um ocupante do primeiro escalão de algum governo.

Ótima dica de leitura. Fica a dica

Eu sei que este texto está ficando longo. Isso não é de propósito, mas tem um propósito: não escrevo para quem se limita à lacração. Se você quer lacrar com meu texto, bom, talvez você esteja no lugar errado. Aqui é lugar de dúvidas e algumas certezas esparsas.

Até aqui estou desenhando que a participação democrática é um tanto complexa na nossa democracia. Por isso não podemos ter ingenuidade com os espaços que nos são oferecidos para debater.

Claro que é importante termos um amplo espaço para termos contato entre nós e com os tomadores de decisão. Isso é muitíssimo importante! Mas tem algumas jogadas estratégicas que ascendem luzes amarelas quase vermelhas (ou alaranjadas na cor do ‘Partido Novo’) para mim.

É bem comum o uso da criação de espaços de debates democráticos para amenizar críticas e ações da sociedade civil organizada.

Na prática são oferecidos espaços de contato com técnicos e planejadores, são oferecidas reuniões com chefias de departamentos, são realizadas reuniões que às vezes contam com a presença de secretários e prefeitos…. enfim, são dadas várias pistas de aconchego e conforto enquanto as decisões de verdade continuam sendo feitas na sala ao lado.

Nossa, parece que estou só dando a minha opinião. Vou falar sobre alguns fatos históricos (e aqui já vou reengatar com a ideia central do texto sobre a lei recém promulgada — e o motivo de meu incômodo cidadão).

São Paulo é a metrópole automotiva do país.

São viadutos, pontes e vias expressas que desde quase sempre tomaram conta do espaço urbano. Somente no início dos anos 2000 alguns ciclistas começaram a se reunir para questionar essa carrocracia (ou de forma mais simples: a democracia através do uso do carro).

Esse caldo começou a engrossar lá pelos idos de 2008, onde centenas de ciclistas passaram a se reunir toda última sexta-feita de cada mês para declarar sua existência urbana, se encontrar, se fazer ouvir numa cidade que silencia quem não está de carro e, de quebra, acessar a cidade de forma lúdica e cidadã.

Você sabe que estou falando da bicicletada, né? Veja aqui uma chamada de 2012 para comemorar os dez anos deste encontro mensal que foi tão emblemático para a urbanidade paulistana.

A imprensa internacional também fez algumas boas análises deste contexto. Confira aqui um artigo bem interessante da DW

Aliás, para quem é um ‘nativo das ciclovias paulistanas’ vale a pena recordar que toda política pública é dinâmica e que nada foi ofertado graciosamente para os ciclistas. Teve muita e muita luta, embate e discussões chatas para termos o que temos hoje.

Aqui neste video dá para ter uma pequena ideia do que era se deslocar de bicicleta pela cidade naquele já distante ano de 2012…. (tenho poucas saudades do desconforto de pedalar com a sensação de quase morte a cada esquina).

Pronto. Já desenhei o ponto de partida.

Foi neste contexto de efervecência que os ciclistas se fizeram respeitar. Antes disso tudo tinha algumas poucas pessoas bem gabaritadas fazendo este debate, mas eram essas questões não eram estruturadas (aqui estou falando da RENATA FALZONI, ARTURO ALCORTA, CLEBER ANDERSON, ETC).

Essa galerinha fazia barulho mas não tinha uma massa crítica para ressoar, discordar, concordar e contribuir com os ecos de cidadania.

Naquela efervecência de 2008 a 2013 a bicicleta passou a ser um ponto central na vida de muita gente da classe média.

Os ciclistas que antes eram pessoas extremamente precarizadas nas periferias (e alguns fazendo pequenas entregas no centro) passaram a fazer parte de uma classe média de jovens advogados, engenheiros, arquitetos, desginers, professores, etc.

A geração que foi beneficiada pelo PROUNI e FIES começava a dar as caras no debate urbano. Algumas pessoas tinham feito viagens pelo exterior e voltaram com a ideia óbvia de que os deslocamentos urbanos curtos poderiam ser realizados de outra maneira.

Daí questões como intermodalidade voltam a pipocar de forma gritante: “ué, não podemos entrar com nossa bicicleta no metrô/trem de noite? Não temos bicicletários seguros pela cidade? Não temos ciclovias nas pontes

Este video acima é um clássico que merece ser sempre lembrado. Assista lentamente e deguste um tanto da beleza dos argumentos.

Aliás, outras questões passaram a gritar no cotidiano e quase todas giravam em torno do real motivo de não podermos usar a bicicleta para deslocamentos urbanos. Claro que a tensa relação com os carros era sempre uma questão central.

Aô poder público! Fiscalização é importante porque já temos leis para proteger os ciclistas!

Invista um pouquinho do seu tempo neste video para ver que a lei é uma coisa e lá fora a pegada é outra.

Foi nesse contexto que as pressões da socidade civil começaram a se infiltrar nos corredores em que são tomadas decisões. Fulano que era da CET, outro que era concursado em uma secretaria, fulana concursada no governo do Estado, ciclano que era Promotor de Justiça…. todos que tinham certa afinidade com a bicicleta passaram a pressionar para que essa relação passasse a ser menos incômoda para quem pedala.

Daí vieram aberturar como um grupo de estudos de mobilidade na gestão JOSE SERRA (estou fritando para tentar lembrar o nome deste grupo, mas infelizemente minha mente não ajudou), grupos técnicos na gestão GILBERTO KASSAB para implantar ciclorrotas em moema e lapa (além da sinalização de uma rota turistica de bicicletas no centro da cidade), até que….

Bom, daí vem FERNANDO HADDAD e as pressões de 2013. Para encurtar a história forma criados o Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT) e a Câmara Temática da Bicicleta (CTB), ambos com intensa participação da CICLOCIDADE e CICLOBR (entidades representativas de ciclistas muito atuantes à época).

Aqui uma reunião da Câmara Temática da Bicicleta com o Prefeito e diversos secretários municipais — crédito: Ciclocidade.

Tá. Agora você entendeu meu ponto, né?

A lei já prevê diversas formas participativas para tudo que envolve bicicleta. Aliás, prevê essa participação para tudo que é política pública. Não precisa de mais detalhes e burocracia sobre esse tema, mas para entender essa minha discordância é preciso entender um pouco sobre o que aconteceu após o HADDAD.

Aliás, lembra aquelas coisas da esola sobre leis de NEWTON? Toda ação leva uma ação em sentido contrário

No campo das políticas públicas isso pode ser chamada de ‘efeito backlash’ e no campo da mobilidade pode-se usar o termo ‘bikelash”

Você acha que estou inventando coisas? Bem, olha este texto que fala sobre avanços e retrocessos na Philadelfia (EUA) em relação à Criação de um Conselho Municipal sobre ciclovias.

O ciclo é bem manjado: aumentam número de usuários — a bicicleta começa a incomodar — criam uma burocracia participativa para conter os avanços — após alguns anos a burocracia se volta à retomada do espaço que se tornaram inutilizáveis para ciclistas.

Eu sei que o texto está ficando longo.

Não me importa se você tem preguiça de ler tanto. Estou mais preocupado em traçar uma linha no chão para pensarmos melhor sobre os conceitos jurídicos que na verdade são apenas parte da balela política daqueles que sempre estiveram nos corredores do poder (e que nos toleraram por alguns anos).

Tudo é política, inclusive leis e demais iniciativas jurídicas.

Poxa, vocês podem me acusar de estrangeirismos tontos só para eu me gabar de ter tido alguma disposição para refletir sobre esse tema em específico.

Então vou falar sobre São Paulo. Melhor ainda, vou falar sobre a ciclovia da paulista (essa queridinha da cidade).

Vocês se lembram que a implantação da ciclovia da paulista não foi, digamos, pacífica? Teve muita resistência de vários grupos da sociedade e houve inclusive uma Ação Civil Pública do Ministério Público para impedir a execução deste projeto.

Não vou falar do juridiquês, fiquem tranquilos.

Parte do argumento do MP foi a falta de realização de audiência pública para debater o projeto da ciclovia da paulista (psiu, lembra da recente lei que foi promulgada? Sim, essa lei que falei lá em cima do texto. Percebe o ponto?).

Leia aqui um manifesto muito bom publicado no Vá de Bike sobre o tema.

Nesse processo um juiz deu um liminar para parar as obras imediatamente. Alguns dias depois teve uma graaaande manifestação.

Quer saber como foi? Veja o video abaixo (produzido pelo Vá de Bike)

No dia desta manifestação o Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento a um recurso para cassar a liminar e autorizar a continuidade das obras da ciclovia da paulista (puxa, essa noite foi realmente emocionante… me lembro de vários detalhes).

Fora o juridiquês, sabe qual foram os argumentos utilizados para cassar a decisão? Não havia lei obrigando a realização de audiência pública específica para implantação de estruturas cicloviárias e que o plano cicloviário já tinha passado por várias e várias audiências públicas.

Além disso os conselhos participativos já tinham debatido o tema e havia ocorrido prazo para coleta de informação da sociedade por vários canais da Prefeitura.

Recentemente conversei com pessoas que trabalharam na CET nesta época e houve uma questão bem constante nas falas: quase todo o tempo de trabalho era destinado para responder às varias demandas da sociedade sobre muitos detalhes da ciclovia da paulista e de várias outras ciclovias pela cidade.

Ou seja, houve ampla participação da sociedade para defender e atacar o projeto.

Com base nisso a Prefeitura apresentou à justiça a quantidade de participações da sociedade e, com base nisso, houve a decisão que liberou a obra.

Se tivesse existido essa recente lei que obriga a realização de Audiência Pública talvez a ciclovia da paulista não existisse.

E aqui é preciso tomar um cuidado muito importante. A cidade é gerida de acordo com interesses desiguais. Enquanto a ciclovia da paulista tem um esmero a cada centímetro, as ciclovias da periferia são feitas de maneira menos cautelosa.

Isso pode se refletir em relação às Audiências Públicas: enquanto uma audiência pública pode ser o necessário para aprovar/reprovar/avaliar ciclovias de toda a zona norte da cidade, talvez para a ciclovia da avenida paulista iriam pedir uma (ou mais) audiências públicas para ouvir pessoas sobre cada centímetro da ciclovia.

Entende o ponto?

Não se trata de ampliar a participação democrática. Pelo contrário!

A recente lei é muito perigosa porque impõe uma etapa que só funciona para as estruturas cicloviárias e pode ser usada de forma cirurgica para criar obstáculos quando convém para alguns setores da sociedade (normalmente aqueles que sempre estiveram nos corredores do poder e que por um descuido não tenham evitado algumas ideias no nascedouro).

Sabe um ponto que me chama a atenção? A própria matéria do Caio indica que a UCB não foi ouvida para a elaboração da lei.

Talvez nem tenha ocorrido nenhuma audiência pública nos debates e talvez não tenha ocorrido participação social em uma lei que supostamente foi destinada a aumentar a participação social em matérias relevantes.

Tem gente emocionada achando que agora vai ter mais chance de interferir na tomada de decisões. Respeito essas pessoas, mas discordo.

O que aconteceu com o CMTT e a CTB é uma boa ilustração disso. Essas esferas de participação social se tornaram apenas um teatro mágico em que várias pessoas se esforçam para criticar enquanto técnicos e planejadores fingem escutar.

A pariticipação democrática se tornou um um grande divã para amaciar as revoltas daqueles que se esforçam para se organizar por uma cidade mais humanizada.

O que pode acontecer com essas Audiências Públicas? Bom, não sou adivinho e nem prevejo o futuro, mas é bem provável que sejam ocasiões super tensas em que a prefeitura chama a ‘sociedade’ para debater questões nas quais a tomada de decisões só depende do termômetro político de ocasião.

Se os formadores de opinião se digladiarem e mostrarem que podem implantar a ciclovia… opa, tudo bem, a prefeitura vai ser boazinha. Se setores mais conservadores ganharem esta batalha… bom, terá algum entrave técnico que impedirá qualquer avanço nas obras.

Vejo essas complexidades nas entrelinhas desta lei aprovada.

E se restar alguma dúvida, importa lembrar que não há audiências públicas para realizar asfaltamento pela enésima vez em grandes avenidas no ano anterior às eleições (e a um custo BILIONÁRIO).

Conclusão

São dois pesos e duas medidas.

O título deste texto é um tanto irônico e retórico, quiçá sarcástico.

O teatro da participação social está (e sempre esteve) em cartaz, bastanto entender desse jogo para perceber que quem vai ser ouvido são aqueles que participam do jogo.

Outros atores da sociedade são convidados a participar, mas ficam numa outra linha de atuação. Podemos até sentar no divã mas não vamos tomar decisões importantes em nossas vidas urbanas.

Seremos a resistência fervilhando até que venha algum prefeito que nos respeite a ponto de nos colocar na mesa principal para pensarmos em uma cidade que seja minimamente (bem minimamente mesmo) uma realidade de sonhos menos dependentes de uma caixa motorizada que em breve será movida por baterias elétricas e condizada de forma autônoma.

O que essa lei faz é comunicar que alguns vão ter de gritar mais e ainda assim não vão ser ouvidos (enquanto outros sussurram no cangote de quem toma decisões).

Essa lei é boa, mas não é boa para os que vem de baixo.

Essa lei protege quem sempre esteve protegido dentro da burocracia (e dos carros).

Essa lei é o suco concentrado de Brasil e suas jabuticabas jurídico-legislativas.

--

--